Entrevista com Rita Kohl

Por Cacau Ideguchi

ENTREVISTAS

11/23/20237 min read

Crédito da foto: Fundação Japão

Após o evento "Ponto de Encontro: Literatura japonesa contemporânea", organizado pela Fundação Japão São Paulo, conversei com os três convidados que formaram a mesa de debate no dia 28 de março de 2019*.

A primeira entrevistada foi a tradutora e intérprete Rita Kohl. Durante a palestra, ela contou um pouco da sua trajetória como tradutora e atribuiu sua escolha de profissão por desde de o início ter um pensamento muito crítico sobre os textos que lia, sempre pensando em como aquela tradução poderia ser melhor ou mais clara para o público brasileiro. Durante seu mestrado no Japão, estudou a tradução brasileira de Musashi e ao voltar ao Brasil começou a realizar trabalhos para a Estação Liberdade; Angel Bojadsen (editor também presente no encontro) deu as primeiras oportunidades de tradução e com isso ela foi aprendendo na prática como traduzir.

Durante sua pesquisa e posterior trabalho, Rita percebeu que na tradução algo sempre vai se perder, que não existe uma tradução correta; é preciso ter um desapego grande para conseguir traduzir um texto. Isso porque, principalmente em um língua como japonês onde existem kanjis com sentidos amplos e dificilmente traduzíveis, é necessário um trabalho interpretativo e de edição intenso; ela também falou sobre o entendimento do que é preciso manter para não prejudicar o ritmo da leitura e não lotar o leitor com diversas notas de rodapé por capítulo. Na visão dela, é importante encarar que o livro está ali como uma obra a ser fruída e não necessariamente um livro teórico sobre cultura.

Cacau Ideguchi: Você comentou sobre não ter descendência japonesa e se especializar na tradução do japonês. Pode nos contar quais são os pontos positivos e negativos na tradução de uma língua/cultura muito diferente da sua de origem?

Rita Kohl: Como há muitos descendentes japoneses no Brasil, até hoje grande parte dos tradutores e intérpretes de língua japonesa são descendentes, o que não acontece com outras línguas. Isso cria uma expectativa em relação a esses profissionais, então já me deparei com olhares surpresos e desconfiança ao me apresentar como intérprete, já vi leitores criticando a editora por estarem lançando uma tradução minha (supondo pelo meu sobrenome que estavam publicando uma tradução indireta), coisas assim. Até entendo que isso aconteça de forma irrefletida, por uma questão de hábito. Mas, se não tomarmos cuidado, é fácil internalizar isso e sentir que não-descendentes somos menos aptos ou qualificados para fazer esses trabalhos. Meu comentário no evento tinha mais a ver com essas questões de expectativas e de um sentimento de inadequação que pode surgir e que devemos enfrentar, pois não faz sentido limitar o estudo da língua e da cultura apenas às pessoas de origem japonesa.

Pensando na prática da tradução, acho difícil afirmar quais são pontos positivos e negativos, pois nunca traduzi uma língua com a qual tivesse uma relação familiar para comparar, e não gostaria de fazer generalizações sobre a experiência de quem tem essa relação com a língua japonesa. Porém, uma coisa que eu sinto é que, quando você aprende a língua “do zero”, de forma mais sistemática, as suas peculiaridades ficam em evidência. Há muitas expressões, conceitos e estruturas gramaticais da língua japonesa que me causaram grande estranhamento num primeiro momento, coisas para as quais não temos as “caixinhas” correspondentes em português. Então precisamos desenvolver novas categorias e relações para compreender seu uso e significado e, neste processo, buscamos semelhanças e traduções possíveis. Acho que essa percepção das diferenças e o esforço de tentar construir equivalências durante o aprendizado podem ser úteis no processo de tradução, pois essas coisas para as quais não há um equivalente simples costumam ser as mais desafiadoras.

CI: Como foi o processo de tradução do livro Ouça a canção do vento / Pinball, 1973?

RK: Eu fiquei muito feliz de traduzir estas duas novelas porque tenho uma relação afetiva com elas. Caçando carneiros, o terceiro livro dessa trilogia, foi a primeira obra de literatura japonesa contemporânea com que tive contato e até hoje é uma das minhas preferidas do autor, e Ouça a canção do vento e Pinball 1973 foram dois dos primeiros livros que li (ou tentei ler) no original em japonês, ainda como estudante na USP.

Este foi o segundo livro que traduzi e eu ainda me sentia bastante insegura (desconfio que a insegurança nunca desapareça por completo, mas com o tempo e a experiência, ela diminui) então a afinidade com as obras foi importante. Além disso, elas foram divertidas de traduzir por ter uma dose de humor, bastante diálogos, e um tom coloquial que é mais próximo da minha maneira de falar e escrever. Mas há também alguns trechos que achei desafiadores - reflexões mais densas, descrições longas, em que é preciso buscar um equilíbrio entre o tom informal e as imagens mais poéticas, a musicalidade. Que eu me lembre, a parte mais difícil foi o trecho final da segunda novela. Mas geralmente no final de um livro você já pegou melhor o vocabulário e o ritmo do texto, então o trabalho tende a fluir melhor. Ah, e as questões técnicas sobre máquinas de pinball! Sou muito grata a alguns sites de entusiastas do pinball, que me ajudaram a esclarecer os termos e o funcionamento das máquinas. De resto, contei com a ajuda falantes nativos e consultei outras traduções como referência, para ajudar a esclarecer trechos ambíguos e confirmar minha interpretação quando eu não estava segura. Estes são hábitos que mantenho até hoje, principalmente pedir a opinião de colegas tradutores ou falantes nativos. Quando não me ocorre mais de uma leitura ou sinto que posso estar deixando escapar alguma nuance ou referência, sempre acho melhor pedir uma segunda opinião.

CI: Pode falar um pouco mais sobre essa interpretação do tradutor em relação a quando é necessário ou não manter uma palavra original no texto ou gerar uma nota de rodapé? Colocar a obra em um âmbito mais mundial tem a ver com a percepção do tradutor de caso a caso ou está se desenvolvendo uma “escola de tradução” dentro desse viés?

RK: As opiniões que eu dei sobre isso no evento são bem pessoais, não acho que representem uma tendência geral nem sei se representam outros tradutores… Mas aproveito para desenvolver um pouco o assunto, pois é uma questão que me interessa muito. Essa oposição entre tradução “estrangeirizante” ou “domesticante” é recorrente na teoria da tradução, mas a meu ver não há como tentar defender uma ou outra postura de forma absoluta, sem considerar as especificidades de cada obra e o contexto cultural onde ela é traduzida.

Na tradução de literatura japonesa no Brasil, vejo uma tendência a manter muitos aspectos estrangeiros, seja usando as palavras originais (como futon, hashi ou sashimi), com a inserção de notas explicativas, ou simplesmente mantendo de forma mais literal coisas que poderiam ser adaptadas. Acredito que isso se deve a vários elementos: a forte presença da cultura japonesa aqui, o tipo de obras que tiveram maior destaque e influenciaram as traduções seguintes, o perfil de leitor que temos, a relação da tradução com os estudos acadêmicos, a passagem das traduções indiretas para as traduções diretas. E não acho, de maneira alguma, que seja ruim. Pessoalmente, prefiro uma tradução que mantenha muitos aspectos “estrangeiros”, cheia de notas, do que uma tradução que corta o texto, adapta trechos inteiros, apaga elementos menos palatáveis, como é o caso de algumas traduções para língua inglesa (principalmente mais antigas).

No entanto, acho perigoso assumir que esta postura seja superior em si. É fácil pensar que, quanto mais elementos da língua e da cultura japonesa for possível trazer explicitamente para o leitor, melhor. Mas agora, quando há cada vez mais autores sendo traduzidos e podemos apresentar um leque mais diverso para os leitores brasileiros, tenho repensado essa questão.

Primeiro, porque na tradução, infelizmente, não é possível manter tudo: você sempre vai precisar priorizar alguns aspectos em detrimento de outros. Então, para priorizar esses elementos estrangeiros e para trazer/inserir mais informações relativas à cultura, pode ser preciso sacrificar coisas como a fluência da leitura, o humor, a sonoridade ou poesia das imagens, etc. Isso pode valer apenas em certas obras ou trechos, mas não necessariamente em todos.

Segundo, porque esse esforço de realçar o que é estrangeiro pode acabar colocando a obra e o autor sempre como um “outro”, reforçando as diferenças e a distância entre nossas referências. Isso estimula que as obras de literatura sejam recebidas primeiro como representantes do Japão e depois como literatura, um efeito que me incomoda bastante.

É claro que este papel de ponte é importante, mas não sei se todos os livros de literatura japonesa devem ter, como uma de suas principais funções, apresentar a cultura japonesa ao leitor brasileiro. E, acima de tudo, mesmo que o objetivo seja construir essa ponte, acredito que sua solidez nem sempre depende de uma tradução “estrangeirizante” e de elementos como termos originais ou notas de rodapé. Em alguns casos, sim, eles podem enriquecer muito a obra. Em outros, a melhor forma de aproximar o leitor do autor e do texto original pode ser através do humor, do suspense, do ritmo, da emoção. E para isso pode ser preciso fazer escolhas na tradução que serão vistas como “domesticantes”. Então acho importante manter certa flexibilidade em relação a essas abordagens.

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* Entrevista realizada em março de 2019 a pedido da ABEJ - Associação Brasileira de Estudos Japoneses.