Flor do mal: uma breve exposição do teatro kabuki pelo olhar de Yukio Mishima
Por Daniel Aleixo
ARTIGOS
6/13/20249 min read


No dia 03 de julho de 1970, o Teatro Nacional do Japão, em Tóquio, lançou um programa de trainee de kabuki (歌舞伎) para jovens atores. Nesse dia, os realizadores do evento chamaram o escritor Yukio Mishima (1925-1970) para discursar diante do primeiro grupo de dez jovens selecionados.
Mas por que Mishima?
Talvez pelo fato de ele ter assistido à sua primeira peça de kabuki aos treze anos e, depois disso, ter passado dez anos consecutivos se dedicando avidamente como espectador a ponto de decorar as falas dos atores, saber quando eles erravam em cena e conseguir permissão para entrar no camarim após as performances. Ou porque, até aquele momento, Mishima já havia publicado mais de sessenta trabalhos, incluindo romances, poemas, ensaios, dramaturgias, roteiros de cinema, peças de teatro de bonecos, dramas modernos e, é claro, cinco peças de kabuki. De qualquer forma, lá estava ele, contratado por uma importantíssima instituição para falar sobre a arte e a beleza do teatro clássico.
Foi o que eles pensaram...
O discurso de Mishima, publicado posteriormente como Flor do Mal (惡の華) – curiosamente apenas em 1988, dezoito anos após o evento – mostrou-se como um manifesto comparativo entre o kabuki clássico e o kabuki moderno. Sua vivência com esse estilo de arte foi muito custosa, pois sua família inicialmente o repreendia por gostar de algo tão baixo e mundano. No entanto, o pequeno Mishima afirmava que “sentia que o kabuki tinha um indescritível e misterioso sabor. Um cheiro muito forte, mas um gosto delicioso”. Ingressos eram distribuídos quase que gratuitamente, ao contrário de hoje em que os valores são muito altos.
"Quando você vê kabuki num lugar como o Teatro Nacional, com todos esses perfeitos equipamentos de iluminação, aparelhos maravilhosos nos bastidores; toda essa indumentária novinha em folha; tudo é pequeno, perfeito, mecânico. A perfeição mecânica pode até ser notável, mas os atores já não são mais tão impressionantes quanto antes"
Yukio Mishima
Ao contrário do que se possa pensar com esse excerto, Mishima não critica necessariamente a tecnologização das artes cênicas, não se trata de um mergulho raso. Até porque o kabuki sofreu muitas transformações desde sua criação, a começar pelas leis proibitivas de gênero que, primeiro expulsaram as mulheres do palco (1629), depois os garotos jovens (1652) e, enfim, instituíram os homens mais velhos; o incremento da cortina corrediça (1664), da prancha de caminhar (1666), da partitura corporal e do roteiro (1670), da maquiagem furtada criativamente das operetas chinesas (1673) e de um período de vinte anos de modernizações, de 1750 a 1780, fruto do palco giratório e das lamparinas de óleo, que libertaram o kabuki completamente da estética do antiquíssimo teatro nō (能).
Não, não era sobre isso que Mishima estava falando, mas sim de como toda aquela estética luxuosa só havia sido possível e permitida mediante a um processo gradual de higienização das poéticas do kabuki, como veremos a seguir.
Teatro Nacional do Japão em 2018
A flor do mal
Da Era Edo até o fim da guerra, os teatros se localizavam em distritos periféricos nas grandes cidades para serem distanciados dos centros religiosos. Esses distritos eram conhecidos como akusho (悪所), “mau lugar”. Teatros e bordéis eram considerados prédios irmãos desde 1617 e, ao longo da história, samurais e nobres que se interessassem por esse tipo de entretenimento precisavam entrar disfarçados. Uma série de episódios envolvendo fechamento de teatros por brigas e atentado à moral resultaram em revoltas de artistas e até de mecenas. A interação entre público e atores era constante, um lugar pouco silencioso, se pensarmos uma linguagem teatral que migrou das ruas para as salas de teatro próprias, uma encenação corajosa de épicos, tragédias, comédias e sátiras, tudo com uma aura anti-establishment inadmissível ao xogunato.
Kabuki do Edo (1603-1868) Iwasa Matabei
Kabuki do Meiji (1868-1912) Masanobu Okumura
Do forte odor e delicioso sabor, Mishima pensava esse kabuki marginal como uma “flor nascida do mal”; uma arte que cultiva erotismo silencioso e transgressão sensitiva, enredos carregados de crítica social e religiosa e uma beleza maligna que nos toca através de um flash momentâneo. Segundo o escritor, quando um ator mostra seu pé desnudo por baixo do quimono, nada acontece, mas quando ele faz um pequeno movimento em arco com aquele pé, a plateia se mobiliza de alguma forma. É desse flash que a faísca da beleza se lança. Beleza essa que não é sinônimo de sublime, muito pelo contrário, “o kabuki por si só é maligno”. Um ator de kabuki não pode ser sublime em absoluto, pois se ele, em um mesma peça, atua no papel de um samurai leal e depois no de um ladrão covarde, a caoticidade do que é ser humano sempre vai permear esse ator. Ele deve ser o que há de pior e o que há de melhor, conseguir brincar com essas duas forças alternando o equilíbrio como se manipula uma bola de metal quente que precisa escapar de uma mão a outra para aliviar a pele dos dedos momentaneamente. Atores como Nakamura Kichiemon, Uzaemon XV e Nizaemon XII lidavam com isso o tempo todo.
"O kabuki é um ninho de males. Suponha que você o purifique e o transforme em algo moralmente belo, limpo, para torná-lo algo que você possa mostrar em qualquer parte do mundo sem constrangimento, belo e que respeita os seres humanos apenas como deveriam ser – se você quiser fazer isso, você pode. Mas no momento em que fizer, o kabuki desaparecerá"
Yukio Mishima
O teatro moderno
Um outro fator muito importante para o apagamento do kabuki antigo, segundo Mishima, foi a fusão da atuação clássica com os elementos dramáticos do texto euro-ocidental. Em 1988, foi fundado o shinpa (新派) “Novo Estilo”, mesclando melodrama burguês com estética de kabuki. O estilo foi escoando cada vez mais até que, em 1909, a partir de nomes como Sadanji Ichikawa I, ator do Jiyu Gekijo (自由劇場) “Teatro Livre”, e Shoyo Tsubouchi, fundador da Bungei Kyoukai (文芸協会) “Sociedade dramática”, surgiu o Shingeki (新劇) “Teatro Novo”, um movimento de jovens diretores e dramaturgos interessados em encenarem peças de autores estrangeiros como Molière, Shakespeare, Ibsen, Tchekhov, entre outros das vertentes românticas e realistas. A partir daí, elementos como o psicologismo e a introspecção suplantaram o virtuosismo do corpo físico do ator.
"Eles querem pensar que kabuki é um teatro do período feudal que retrata tragédias pessoais, suicídios amorosos e resistência contra a moralidade daquele período. Morte como o único meio de resistência. Se você analisa o kabuki quanto texto literário, isso está certo, nada mais apropriado do que essa colocação. Mas o kabuki enquanto performance não existe em análise. Não segue os preceitos do teatro ocidental, que tenta fazer com que a audiência entenda as coisas, mova-a intelectualmente, através de choques e mais choques entre palavras. Na verdade, tudo no kabuki é feito a partir dos sentidos"
Yukio Mishima
Peça de Shingeki
Peça de Shinpa
Quando o Novo Teatro se popularizou, Mishima criticou que o entendimento da personagem passou a vir, sobretudo, do texto escrito, da mensagem, do significado, em detrimento das sensações e da euforia expressada pela coreografia e pela dança. Ele chegou a escrever em seu ensaio de bastidores, durante a montagem de 1956 da peça Rokumeikan (鹿鳴館) que “o que diferencia o shingeki dos estilos clássicos de teatro são os padrões de atuação, isto é, os códigos que definem sentimentos e se mostram claros, dramáticos, estilizados para reconhecimento do público”. No caso do Shingeki, o estudo da personagem se dá pelo domínio do texto escrito e o vínculo mais forte entre palco e público seria feito pelo idioma, o importante da trama é a mensagem, é o que se pensa por trás do que se diz, não o que se faz a partir do que se diz. O kabuki por sua vez, tende a suplantar a palavra pela veemência dos gestos, já que o estudo da personagem se dá pela coreografia. A relação entre palco e público é de mobilização sensorial, pois “você atua querendo prender a atenção do público. Se você apenas atuar como se estivesse ensinando, isso não será possível”. É importante destacar que mesmo hoje o texto não subjugou a coreografia no teatro kabuki como Mishima poderia ter pensado, mas houve certa atualização do público de teatro, principalmente dos mais jovens, que passaram a preferir montagens underground de figuras como Juro Kara e Shuji Terayama e até mesmo espetáculos mais suntuosos como o Takarazuka Revue do que o kabuki. De certa forma, o teatro clássico perdia espaço para o teatro moderno e grande parte da culpa disso, segundo o escritor, seria o apagamento da camada crítica da beleza cruel do kabuki.
Considerações finais
Tudo isso faz do kabuki originário algo muito distinto do requinte e do purismo propostos por instituições como o Teatro Nacional. Tais requintes esses advindos da Era Meiji (1868-1912), mais especificamente a partir do ano de 1887, quando, após assistirem a uma peça do ator de kabuki Danjūrō Ichikawa IX junto a autoridades estrangeiras, o ministro das Relações Exteriores e o Imperador Meiji “aboliram” os preconceitos para com os atores de kabuki, instalaram sistema de luz elétrica nos teatros e oficializaram-no como arte dramática. “Atores agora são membros da sociedade!”. No ano seguinte, foi construído o Kabuki-za (歌舞伎座). A popularização midiática dos atores, que passaram a focar em papéis mais famosos, coisa que fez o próprio Mishima parar de visitar os camarins, desgosto por sempre o importunar pedindo por personagens-destaque em suas peças. Uma série de acontecimentos curiosos se pensarmos que, até vinte anos antes, o governo havia proibido diversos enredos tradicionais e censurado atores por medo das peças inflamarem demais o público.
Teatro este que por centenas de anos foi obrigado a existir em condições de precariedade, agora possui holofotes e cortinas que reluzem dourado. Atores esses que não eram considerados cidadãos, agora são as estrelas do show. Lapidação de tema e de conteúdo. Toda a reforma que proporcionou a reviravolta do que era o teatro clássico japonês só foi possível a partir do momento em que se tornou interessante para o Japão promover uma identidade cultural não só aos olhos internacionais, mas também às suas intrínsecas questões políticas que já estavam encaminhadas para a mudança. Logicamente, isso custou ao kabuki.
Sendo assim, é engraçado imaginar que uma figura polêmica como Yukio Mishima, exaustivamente equiparado pelo senso comum como uma influência conservadora e por vezes neoimperialista, se atentou por meio de seu discurso a rememorar e a exaltar um modus operandi artístico avesso à moralidade de sua época e lamentou a perda dessa autenticidade transgressora mediante aparatos estatais. Eu gosto de pensar que Mishima é um exemplo de como é complicado e perigoso carimbar certas rotulações às pessoas e como o olhar antropológico, que é uma habilidade muito importante, precisa estar ainda mais afiado quando se trata de experiências socioculturais diferentes das nossas. Ademais, gostaria de finalizar garantindo que esse artigo não tem, de maneira alguma, a intenção de sugerir uma aversão ao kabuki de hoje em dia ou promover saudosismos, mas sim de dar luz a essa outra perspectiva e reafirmar o óbvio: as coisas sempre mudam.
Referências:
KUSANO, Darci. Os teatros Bunraku e Kabuki: uma visada barroca. São Paulo: Perspectiva, 1993.
MISHIMA, Yukio. Sato, Hiroaki (org). My friends Hitler: and Other plays. New York: Columbia University Press, 2002.
Daniel Aleixo: é ator, dançarino e pesquisador. Bacharelado em Artes Cênicas pela UNICAMP. Mestrando em Língua, Literatura e Cultura Japonesa pela USP. Intercâmbio realizado na Universidade de Tóquio para Estudos Estrangeiros (TUFS) e na Universidade de Kanagawa (KU). Como dançarino e ator, integra o Núcleo Experimental de Butô e a Fujima Ryu Escola de Dança Kabuki. Como pesquisador, integra o Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA) e o Grupo Kinyōkai.
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Texto publicado anteriormente em 18 de janeiro de 2022.









