Fotografando com o corpo: processo, imaginação e materialidade na obra de Mari Katayama
Por Lucas Gibson
ARTIGOS
2/22/20249 min read


Há poucas semanas, folheando depois de muito tempo o livro A hora da estrela, de Clarice Lispector, deparei-me com uma frase que me proporcionou as faíscas para este texto: “Não sou um intelectual, escrevo com o corpo”. Associei-a imediatamente ao trabalho de Mari Katayama (片山真理, 1987-), artista japonesa amplamente conhecida e divulgada como fotógrafa, ainda que detentora de uma obra marcada pela multiplicidade de meios e experimentações.
Nascida em Saitama e criada em Gunma, a artista, que cresceu ouvindo o som da máquina de costura de sua mãe, aprendeu a usar linha e agulha antes mesmo de aprender a escrever. Katayama nasceu com hemimelia tibial e apenas dois dedos na mão esquerda. Aos nove anos de idade, teve as duas pernas parcialmente amputadas e passou a utilizar próteses rígidas que a impediam de comprar calças em lojas comuns. Assim, sua mãe passou a costurar peças personalizadas para ela, fato que marcou seus anos de infância e adolescência.
As séries de Katayama combinam fotografia, escultura, trabalhos de costura e objetos de diversas naturezas, muitas vezes confeccionados por ela mesma. A artista começou sua produção ainda criança, mas foi na adolescência que passou a criar autorretratos que incluíam suas esculturas e objetos costurados. Na época, sua irmã a ajudava a executar as fotografias e Katayama as postava em sua conta na rede Myspace, veículo que permitiu a visibilidade inicial de seus trabalhos. Seu processo artístico se inicia como modo de preencher o espaço entre seu próprio entendimento do ser e da fisicalidade, em um caminho de busca de identidade que envolve a compreensão do corpo e da prática artística.
Mari Katayama. you’re mine #002. Autorretrato, C-print, 2014.
Fonte: KATAYAMA (2019, p. 64-65).
Tendo seu próprio corpo como ponto de partida para a criação artística, a obra de Katayama propõe um diálogo substancial entre as idealizações humanas e a realidade material. O espaço entre o ideal e o real se preenche, para Katayama, a partir da comunicação com os outros ao seu redor. A artista menciona que, quando pequena, sofria bullying e olhava para os corpos de outras crianças desejando ter um “corpo normal”, mas percebia que sua realidade era diferente daquilo.
Atualmente, grande parte desse exercício de constatação e aceitação vem, segundo a artista, do contato com sua própria filha, nascida em 2017: ao olhar para ela, cria-se a percepção quase epifânica de que a vida é boa, e que a realidade material não é ruim, ainda que se distancie das idealizações que são inerentes ao desejo humano. Para Katayama, a compreensão plena do real e do ideal passa pelo entendimento de quem se é e como se é; nesta caminhada comum a qualquer ser humano, a artista acredita que a representação artística de si e de sua realidade concreta permite estabelecer conexões com as pessoas, a sociedade, o mundo.
Seu trabalho já foi largamente exibido no Japão, na Europa e nos Estados Unidos, em eventos e instituições como a Trienal de Aichi, White Rainbow Gallery em Londres, Museu de Arte de Mori em Tóquio, Museu de Arte da Universidade de Michigan, entre muitos outros. O ano de 2019, em especial, foi muito significativo para a carreira de Katayama: além de participar da 58ª Bienal de Veneza, a artista ganhou o prêmio Higashikawa e publicou seu fotolivro Gift, finalista do Photobook of the Year do Paris Photo.
Capa do fotolivro Gift. Mari Katayama, 2019.
Acervo do autor.
Publicado em 2019 pela United Vagabonds e o primeiro de sua carreira, Gift apresenta uma retrospectiva de trabalhos realizados desde 2005, configurando um documento que atesta suas mudanças e evoluções como artista. O livro não é organizado de maneira cronológica e traz, em suas páginas iniciais, autorretratos em preto e branco de Katayama que permeiam os textos introdutórios escritos por Simon Baker e pela própria artista. Logo em seguida, o foco direciona-se para imagens coloridas de diversos objetos, como as próteses usadas por ela ao longo da vida (sendo muitas delas intituladas como “minhas pernas”), próteses de pelúcia e gesso costuradas por ela mesma e sapatos variados, sendo esta primeira seção de objetos marcada por estampas e desenhos diversificados.
Conforme o livro se desenvolve, outros artefatos curiosos e feitos à mão aparecem, como caixas decoradas com colagens, uma mistura de óleo, minerais e material orgânico em frasco e peças costuradas por Katayama. Dentre estas, destaca-se uma espécie de “coração despedaçado”, costurado em diversos pontos e com muitos dedos na superfície, encontrado nas páginas finais da publicação. A artista explica, no texto introdutório do fotolivro, que percebe uma beleza maior em um coração disforme e suas imperfeições, por este ser belo como uma “esfera espelhada que reflete luz em todas as direções”. Os dedos, por sua vez, representam as “mãos auxiliares” que ela gostaria que não faltassem à sua filha durante a vida.
Gradualmente o corpo da artista retorna às imagens, integrado com os objetos e com o cenário à sua volta, que deixam de ser estritamente internos e construídos por Katayama e passam a ser também externos, fortalecendo o caminho seguido pela artista de afirmar sua própria vida e presença nas imagens.
Mari Katayama. bystander #016. C-print, 2016.
Fonte: KATAYAMA (2019, p. 97).
Além das fotografias, o trabalho de Katayama em exposições muitas vezes envolve instalações, criadas a partir da reunião dos objetos e esculturas retratados em suas imagens. Com o nascimento de sua filha em 2017, a artista passou a ter menos tempo para trabalhar em instalações e na confecção de objetos, momento em que a fotografia passou a constituir um ponto mais central em sua prática artística. Contudo, é possível perceber um retorno gradual dos objetos nas exibições dedicadas ao trabalho de Katayama, que tem voltado a confeccioná-los e utilizado os já criados em ocasiões anteriores em suas mostras.
Mari Katayama. Visão de instalação da exposição Broken Heart, realizada na White Rainbow Gallery de Londres em 2019. Obras na imagem: you’re mine #001 (fotografia da esquerda), 2014; Shell (fotografia da direita), 2016; Dolls (escultura), 2018.
Fonte: realtokyo.co.jp.
Katayama cria e une objetos e depois os fotografa, inserindo-se ou não nas cenas. Suas imagens propõem uma complexa combinação de elementos objetivos e subjetivos, que vão desde as próteses de sua infância à expressão genuína de seus desejos. Além disso, os adereços, criados ou resgatados pela artista, dizem respeito à sua própria vida, ainda que suas obras flertem com as ficções e fantasias incorporadas ao processo artístico. Katayama encara o ato de fotografar como uma ação muito física, que a faz ter consciência sobre seu próprio corpo e seus limites. Ao mesmo tempo, é uma ação que a faz perceber que sua vida e sua criação artística possuem uma relação direta com o corpo que lhe foi dado.
Contudo, ao mesmo tempo que a constatação da vida e presença da artista nas imagens é uma interpretação possível, Katayama afirmou em algumas ocasiões que suas imagens não são uma representação de sua vida necessariamente. Na ocasião da abertura de sua exposição no Museu de Arte da Universidade de Michigan em 2019, uma ouvinte da plateia parabenizou Katayama por sua coragem em mostrar a si mesma em um mundo que busca as mudanças corporais a todo custo, e perguntou à fotógrafa a origem desta coragem.
Katayama respondeu simplesmente que não considera que suas imagens sejam ela mesma; ademais, disse que possui várias questões com o próprio corpo e que eventualmente deseja poder mudá-lo (ainda que sua filha ame o corpo da mãe, nas palavras da artista). Em seu processo reflexivo, Katayama diz que por muitas vezes gostaria de habitar um corpo que fosse mais “conveniente” para a sociedade ao seu redor. A artista coloca sua própria estrutura física em um local de centralidade para sua arte, e suas declarações nos evidenciam mais possibilidades interpretativas para suas imagens e objetos, permitindo o entendimento da obra de arte como uma forma de invenção da própria realidade, ainda que diretamente relacionada a fatores materiais e aptos a produzirem questionamentos de ordens distintas.
Mari Katayama em Michigan, na ocasião da abertura de sua exposição no UMMA, 2019.
Reprodução do Instagram da artista @katayamari.
Afirmar que Mari Katayama fotografa com o corpo é algo que pode parecer evidente à primeira vista, se considerarmos que é o corpo que faz a câmera operar. Nas outras modalidades artísticas, ou nas ocupações que habitam a vida humana, é igualmente o corpo, em maiores e menores graus, que segura o pincel, a caneta ou o bisturi. Mas esta afirmação ganha outros significados diante da constatação de que Katayama não segura diretamente a câmera em muitas de suas fotos, tendo em vista que sua obra é intensamente povoada pelo gênero do autorretrato. Independente de tripés, controle remotos, apoios improvisados e assistentes, a presença corporal da própria Katayama é o motivo principal em suas imagens, e quando não é seu corpo que está representado, são os objetos que ela confeccionou com este mesmo corpo que constituem os elementos de suas fotografias.
Simon Baker afirma que toda prática de um artista envolve o questionamento sobre o valor do seu processo de produção e o resultado final deste processo, seja este resultado uma imagem ou um objeto. Em trabalhos como o de Katayama, Baker também destaca as dificuldades de se estabelecer as fronteiras e correlações entre a vida pessoal do artista e seu trabalho, e os obstáculos deste processo se intensificam quando o conteúdo do trabalho realizado é sobre o próprio artista. No fim, Baker compara metaforicamente o trabalho de Katayama à brincadeira cama de gato: “traçado e retraçado, construído e reconstruído, trabalhado e retrabalhado, configurado e reconfigurado, pensado e repensado, mas sempre firmemente segurado entre as duas mãos”.
Diante dessas reflexões, não parece restar dúvida que Mari Katayama é muito mais que uma fotógrafa, ainda que a fotografia seja um resultado comum de sua obra e uma linguagem pertinente para as propostas da artista. A fotografia é, por essência, este espaço de jogos inconclusos entre verdade e ficção, um palco de fabricação de uma realidade autônoma que é fruto da combinação entre materialidade e imaginação, além de possuir um poder de síntese distintivo. Estes pontos configuram objetivos caros à expressão da artista, mas nem por isso delegam à fotografia o papel de sua linguagem única. Aqui, buscamos demonstrar como a obra de Katayama abarca uma espécie de autoria expandida, que atravessa diferentes modalidades artísticas e que privilegia intensamente o processo de produção, colocando-o em um local tão importante quanto o resultado final deste processo, que poderá ser uma fotografia ou um elemento de outra natureza. A autoria no trabalho de Katayama assume um caráter totalizante, que vai muito além do clique ou da linha costurada: sua obra é tão permeada por camadas pessoais, políticas e inventivas que acaba por promover um hibridismo singular de linguagens, o que permite uma interação potente entre imaginação e materialidade, além da reinvenção e reinterpretação constante de seus efeitos.
Referências
BAKER, Simon. Cat’s cradle. In: KATAYAMA, Mari. Gift. Tóquio: United Vagabons, 2019.
COLBERG, Jörg M. Mari Katayama’s Gift. Conscientious Photography Magazine. Disponível em: <https://cphmag.com/mari-katayamas-gift/>. Acesso em: 31 jan. 2022.
KATAYAMA, Mari. Gift. Tóquio: United Vagabons, 2019.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
UM STAMPS. Mari Katayama: My Body as Material. Disponível em: < https://youtu.be/YQPbbzuMC4E/>. Acesso em: 02 fev. 2022.
SHELL-KASHIME. Mari Katayama Website. Disponível em: <https://shell-kashime.com/>. Acesso em: 04 fev. 2022.
Lucas Gibson: Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-graduado em Fotografia e Imagem pelo IUPERJ/UCAM. Pesquisador do Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA) da USP/Unifesp e da Coordenadoria de Assuntos da Ásia (CEÁSIA) da UFPE. De 2014 a 2015, estudou língua, literatura, lei e cultura japonesa na Universidade de Osaka. Seus temas principais de pesquisa são a fotografia japonesa do pós-guerra e contemporânea, o fotolivro/livro de fotografia como veículo de narração e criação de sentidos e os diálogos entre fotografia e literatura. Email: lucascamaragibson@gmail.com.
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Texto publicado anteriormente em 26 de fevereiro de 2022.









