Quando e como ouvimos o Japão? (Re)pensando identidades na música pop japonesa

Por Eldo Pereira

ARTIGOS

8/28/2022

Para consumidoras e consumidores de rádio no Brasil, não é mais difícil ouvir de certas emissoras – que antes transmitiam apenas conteúdos em inglês – apelos linguísticos outros. Temos visto, historicamente, um crescimento oportuno que joga luz, também, sobre outras sonoridades. Fomos alfabetizados com nossas divas pop ocidentais ou com bandas de rock significativas, mas seus pontos de partida, em sua maioria, vinham de lugares comuns: uma conhecida Europa imaginada, a respeitada musicalidade estadunidense, as e os musicistas da Austrália, geografias que dominaram as discussões entre o civilizado e o rebelde.

Essa bolha foi furada com lentidão, mas em um sucesso gradativo ao longo do tempo. No século XXI, ouvimos com frequência Vivir sin aire, da banda mexicana Maná, ser reproduzida em rádios nacionais. Imbranato, de Tiziano Ferro, foi a fração italiana que pudemos conhecer. O sucesso mundial do sexteto RBD revitalizou as estações de rádio para a reprodução de faixas em espanhol, isso sem mencionar os sucessos de artistas colombianos como Shakira e Juanes, ou mesmo os porto-riquenhos Ricky Martin e Daddy Yankee. Casos que hoje podem se apequenar – mas jamais serem diminuídos – diante da onipresença dos sons de artistas hispânicos como Bad Bunny ou Karol G. O pop coreano, o k-pop, garantiu seu lugar. TWICE, Blackpink e BTS têm redesenhado a forma como ouvimos música. Um idioma de origem imprecisa, associado a uma raiz altaica em conexão com o idioma turco, mongol ou tungúsico, totalmente diferente do latino português ou do anglo-saxônico em uma situação de forte evidência.

Um outro idioma com associação altaica que provoca a redação deste texto é o japonês. Por aqui, parece que não ouvimos música neste idioma no sistema de radiodifusão. Por aqui, quando pensamos em música japonesa, parece que pensaremos sempre em nichos: fãs de animação japonesa e a mnemônica quase religiosa de aberturas ou encerramentos de animes, fato que popularizou bandas famosas como Porno Graffitti; grupos de ídolos masculinos e femininos, cantores e cantoras solo, atos como AKB48, Yonezu Kenshi, Hamasaki Ayumi. As outras possibilidades não são apagáveis, mas o apreço pela cultura japonesa parece se instaurar em uma cadeia rizomática cuja porta principal é a popularização ocasionada pelo alcance de animes e mangás. Sem plays em rádios nacionais, sem entradas em paradas locais de streaming, apenas eventos que celebram a cultura pop japonesa.

Vídeo musical da música The day, da banda Porno Graffitti, sucesso ao constituir a abertura da primeira temporada da famosa série de animação japonesa My Hero Academia (Boku no Hīrō Akademia, 僕ぼくのヒーローアカデミア, 2015)

E como, aparentemente, não ouviremos essas escutas por aqui, soa que, especificamente no caso asiático, parece que nos habituamos a encontrar identidades e diferenças e a estimulá-las, adotando os selos propostos por conglomerados fonográficos. Buscamos possibilidades outras como possibilidades do outro mais do que o fazemos com os modelos ocidentais. O pop da Coreia é o k-pop; o pop japonês é o j-pop; o rock japonês é o j-rock, consumindo o outro em nacionalidades representadas por letras. Não fomos acostumados a nomear o pop porto-riquenho de p-pop, tampouco de pr-pop. Razão pela qual escrevo este comentário e, ao invés de propor definições, gostaria de propor indagações. Mesmo sem escutá-lo diariamente, o pop japonês (esta definição mercadológica que este texto não conseguirá complexificar devidamente pela limitação do espaço), mantém aceso o Japão como o segundo maior mercado de música do mundo. Ainda assim, não o ouvimos. Por quê?

Com esta característica, consigo pensar que o j-pop é mesmo um universo. Os relatórios da IFPI, a Federação Internacional da Indústria Fonográfica, posiciona o Japão como este segundo maior mercado. Não é o país que mais cresce na Ásia em termos musicais (este posto é ocupado pela Coreia do Sul), mas ainda detém uma fatia quase utópica de fidelização em vendas físicas que, mesmo em declínio, como apontam os últimos documentos da RIAJ, a associação fonográfica japonesa, mantém-se com uma estabilidade incomparável na oposição com outros territórios. O álbum mais vendido de 2019 foi a compilação 5x20 All the Best!! 1999–2019, do grupo japonês Arashi. Eles assumiram o topo da lista praticamente com suas vendas internas no Japão, quando Taylor Swift e seu disco Lover, na segunda posição, tiveram contabilização mundial. Adoro ME! e Lover, faixas do álbum de Swift. Ouvi estas canções de muitos lugares diferentes. Não pude ouvir as canções de Arashi de qualquer lugar.

Logo, é possível visualizar o campo musical como um espaço de tensionamentos não igualitários. Estas lutas não desmontam os gêneros musicais e, como sabemos, há muitas políticas de diplomacia cultural envolvidas, empreitadas de divulgação, penetração, propagação de imagens em nossos campos de ideias, em nossa imaginação. O Japão, isolado do mundo no século XIX, é forçado a se abrir no momento histórico que fica conhecido como a Restauração Meiji e, a partir de 1868, inicia um intercâmbio intenso entre ideias políticas, artes, culturas, geografias e mercadorias estrangeiras. A música japonesa, após uma série destas políticas, absorveu o outro ocidental para sua própria perpetuação. Em 1988, as músicas produzidas “à la” toque estrangeiro foram nomeadas de j-pop pela rádio FM J Wave. Podemos prestar atenção em dois detalhes neste movimento. O primeiro deles é a característica das canções reproduzidas na rádio, que já soavam como canções ocidentais. O segundo, a questão burocrática da nomenclatura, traz a importância do batismo. Podemos indagar juntos e juntas: nomear estas canções como j-pop promoveu suas transfigurações em músicas genuinamente nipônicas?

Sabendo das disparidades no acesso às informações, podemos e buscamos o outro, asiático ou japonês. O Japão, à sua maneira, nos ajuda a procurá-lo. Autoras e autores da antropologia, sociologia, etnomusicologia e musicologia não deixaram de perceber o importante papel do outro na manufatura da identidade musical japonesa. Esta junção ganhou nomes conhecidos. Blend. Mélange. Mistura. A particularidade do outro está sempre entremeada no campo doméstico e, como qualquer estudo de culturas propõe, é inerente às formações culturais. No caso sonoro japonês, é possível detalhar inúmeros destes processos nas músicas populares. O inglês está sempre à mostra em grande parte de letras ou títulos. O formato conhecido no Ocidente com o uso de versos, refrãos e pontes é muito utilizado na música japonesa.

Há algumas autenticidades que podemos chamar de japonesas. A métrica de 5 ou 7 unidades sonoras das antigas poesias waka pode aparecer nos versos. Instrumentos da música tradicional como shamisen e shakuhachi, desenvolvida desde o Período Nara (710-794) e mais intensamente no Período Muromachi (1336-1573) e Edo (1603-1967) também podem ressoar. No entanto, que Japão buscamos quando o buscamos nas músicas populares? Buscamos um Japão ou um país chamado Puro? As buscas por esta nação e esta nacionalidade por vezes podem indicar um caminho de exotização e essencialismo, que marginaliza a presença de identidade em formas que já conhecemos. Nesse sentido, parece que buscamos as diferenças para nos distanciar, em vez de a buscarmos para nos aproximarmos do que queremos sentir do outro. Possivelmente, a forma mais produtiva de compreender as identidades é seguir as concepções do antropólogo indiano Homi K. Bhabha, entendendo o que somos a partir da difícil palavra “interstícios”, isto é, a ocupação de espaços intermediários múltiplos, em detrimento de mantermos as visões pueris.

Certo dia, um usuário do YouTube comentou, em um dos vídeos da cantora japonesa Koda Kumi, que já não conseguia ouvir as canções produzidas pela artista por soarem extremamente ocidentais. De acordo com ele, ela já não era japonesa. É verdade que quase 90% das canções de Koda Kumi são nomeadas em inglês e uma boa parcela de suas produções recentes têm a participação de produtoras e produtores escandinavos, além de sua inserção como co-produtora e co-letrista. A artista nipo-britânica Rina Sawayama, ao não poder ser indicada a premiações do Reino Unido com seu álbum SAWAYAMA (2020), ouviu de regras institucionais que sua indicação não seria cogitada pelo fato de ela ser japonesa. A artista é cidadã do Reino Unido desde os cinco anos de idade. Quando detivemos o Bastão das Identidades para sermos capazes de afirmar a percentagem ou a anulação de etnicidades? Em ambos os casos, a procura é pela música japonesa ou pelas imagens essencializadas da identidade japonesa?

Vídeo de STFU! (Shut the fuck up!, 2020) da cantora nipo-britânica Rina Sawayama. No vídeo, a artista denuncia a estereotipificação do corpo asiático e da identidade japonesa

Famosas no Japão, as músicas de k-pop constantemente ganham versões em japonês. Neste caso, estamos falando de canções de k-pop que se transfiguram em j-pop por serem cantadas em japonês? O grupo britânico Little Mix lançou uma versão coreana e uma versão japonesa de sua música Wings (2012). A versão coreana trata-se de k-pop, ao passo que a versão japonesa trata-se de j-pop? Se Koda Kumi cantasse integralmente em japonês, sua identidade seria mais japonesa do que atualmente? O domínio do idioma japonês deve ser mais forte do que seu nascimento e crescimento em Quioto, no Japão?

Grupo britânico Little Mix apresenta trecho de versão japonesa do single Wings (2012)

Deixo estas breves questões para ponderação. Poderia finalizar este texto com exemplos musicais os mais diversos, mas um específico me chama a atenção para ocupar esta “página silenciosa”. Com muito sucesso no Japão, o k-pop levou ao país símbolos como o noneto Girls’ Generation (na Coreia do Sul, Sonyeo Sidae, 소녀시대; no Japão, Shōjo jidai, 少女時代). NiZiu (ニジュー), outro noneto, é um grupo japonês idealizado, contudo, por uma gravadora coreana, a famosa JYP Entertainment. Promovido no Japão, o grupo, resultado de uma seleção via reality show, tem alcançado um natural sucesso com base no próprio grupo Girls’ Generation e de outro noneto sul-coreano, o TWICE. A canção Chopstick (2021), faz referências aos “pauzinhos” da alimentação asiática e deixa implícita uma analogia identitária ao falar de amor: “Like a chopstick 1本じゃ掴めない” (Como os pauzinhos, não é possível pegar nada usando apenas um). Estamos visualizando as identidades sonoras japonesas tentando separá-las de seus processos inerentes, ou enxergando-as como o complexo que são? O grupo NiZiu deixa de ser japonês por ter origem em arquétipos sul-coreanos?

Fica implícito o debate identitário na seara musical nipônica, tanto quanto a necessidade de repensar as identidades da forma como são ouvidas e da forma como se querem ser ouvidas. Podemos nos permitir enxergar diversas lógicas de autoafirmação e autoconhecimento identitário. Junto a isso, um exercício de escuta intercultural pode fornecer melhores perspectivas sobre o que ouvimos do Japão e de outras culturas nacionais.

Eldo Pereira: Mestre no Programa de Pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa (Departamento de Letras Orientais) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), com bolsa de pesquisa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Desenvolve pesquisa na área de história da música popular japonesa, em específico na vertente conhecida como j-pop, com investigação acerca de performances identitárias na produção discográfica da cantora Koda Kumi (倖田來未), no prisma das semioses das culturas imagética, sonora e linguística da artista, com especial atenção a contatos inter e transculturais. E-mail: josieldo@usp.br