Tomoo Handa, o Seibi-kai e a formação da arte nipo-brasileira
Por Felipe Mendes Pinto
ARTIGOS
6/7/2022


Imagem: https://www.bunkyo.org.br/br/2024/07/cha-arte-tomoo-handa/
Arte nipo-brasileira. Adjetivos pátrios compostos como este, em sua própria formação, já nos evidenciam um processo de coexistência de características distintas. Atribuem qualidade a uma outra palavra representativa do que é constituído não apenas por um ou outro, mas pelo encontro de ambos. Neste caso, Japão e Brasil.
Nosso povo é formado por processos migratórios dos mais diversos. Em 1908, um navio chamado Kasato Maru aportou em Santos, litoral paulista, trazendo centenas de famílias do arquipélago japonês. Esse foi o início mais expressivo de um grande deslocamento populacional que provocou, nos anos seguintes, muitas modificações culturais e sociais em estados aos quais esses imigrantes se dirigiram, com destaque para Amazonas, Paraná e São Paulo.
O deslocamento de japoneses ao Brasil, durante o século XX, pode ser caracterizado de diversas formas, mas sua principal segmentação é feita em dois grandes grupos: os imigrantes de antes da Segunda Guerra Mundial e os do pós-guerra. Segundo dados do Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, entre 1908 e 1941, o país recebeu mais de 185 mil imigrantes japoneses. Já entre 1942 e 1984, esse número foi de pouco mais de 58 mil pessoas.
Tal expressividade indiscutível, evidentemente, transformaria o espaço cultural brasileiro. Mas nada permanece estático ou imutável no tempo e no espaço. O Japão trazido pelos imigrantes em suas lembranças, suas bagagens e seus costumes foi se modificando no contato com a cultura local. Processos estes que, ao longo dos quase 115 anos que nos separam da chegada do Kasato Maru, formaram o que chamamos de cultura nipo-brasileira.
Em busca de melhores condições de vida e de trabalho, os primeiros imigrantes tinham como destino, em sua maioria, o árduo trabalho agrário em plantações de café. A realidade encontrada por muitos foi bastante diferente daquela imaginada ainda no Japão, ou mesmo durante o percurso de 40 dias a bordo dos navios. Com longas horas de trabalho pesado com a terra, o sonho de juntar recursos financeiros para retornar à terra natal foi se tornando cada vez mais distante.
Face a essa impossibilidade, alguns eram da opinião de que deveria ser formada uma comunidade forte por aqui, estabelecendo raízes nas terras tropicais. Tomoo Handa (Utsunomiya, 1906 - Atibaia, 1996) pensava dessa maneira. Handa chegou no Brasil com a família ainda em 1917 e logo se instalaram no interior do estado de São Paulo, em uma lavoura de café.
Em 1921, transferindo-se para a capital, o jovem passou a frequentar a Escola Profissional Masculina do Brás, onde iniciou sua formação artística. Esta é, inclusive, uma característica recorrente em quase todos os japoneses imigrantes do pré-guerra que se tornaram artistas: tiveram a formação no Brasil.
Entre as décadas de 1920 e 1930, Handa integrou uma das primeiras turmas da recém-fundada Escola de Belas-Artes de São Paulo. Além disso, conheceu grandes nomes no círculo artístico brasileiro, como Mário de Andrade e Jorge Amado.
A extensa obra de Handa é constituída de pinturas que retratam principalmente a vida dos imigrantes na lavoura. Seu legado consiste não apenas de obras artísticas, mas também de vastas páginas escritas sobre sua experiência de ser japonês no Brasil. É autor de livros bastante referenciados nos estudos de imigração, como O imigrante japonês: história de sua vida no Brasil (Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, 1987).
Uma de suas maiores contribuições para o meio da arte está na criação do Grupo Seibi, ou Seibi-kai, em japonês, voltado à discussão e ao fomento da produção artística dos japoneses imigrantes. Essa iniciativa, no entanto, não foi tomada apenas por Handa. Artistas como Hajime Higaki (Imabari, 1908 - São Paulo, 1998), Shigeto Tanaka (Kumamoto, 1910 - São Paulo, 1970) e Yuji Tamaki (Fukui, 1916 - São Paulo, 1979) também se revezavam nas funções administrativas do grupo.
Após uma reunião inaugural com alguns poucos participantes, em abril de 1935, Handa publicou, no jornal Nippak Shimbum — de circulação na comunidade japonesa em São Paulo —, um texto convidando mais pessoas a participarem do próximo encontro.
Era o nascimento da organização que se tornou a base para a carreira de diversos artistas. Dividido em duas fases, o Seibi teve seu primeiro momento de 1935 a 1941, quando os encontros tiveram de ser interrompidos devido à entrada do Japão na Segunda Guerra, na qual Brasil e Japão se encontravam em lados opostos.
Na prática, esses anos de conflito entre 1941 e 1945 significaram, para os japoneses por aqui, muitos tipos de opressão. Do fechamento de escolas à proibição de falarem a própria língua, esses imigrantes sofreram sob o olhar hostil do governo brasileiro. Segundo o historiador da arte Shinji Tanaka, houve, inclusive, casos de fuzilamento e queima de livros importados.
Durante a Guerra, foram suspensas as viagens e os passeios pelo campo para pintar, frequentes nos encontros do Seibi. Os motivos e as temáticas das telas, que eram constituídos principalmente de paisagens, voltaram-se à natureza-morta e aos autorretratos.
A retomada das atividades do Seibi só aconteceu dois anos após o fim da guerra, em 1947. Nesta segunda fase, que durou até 1971, novos artistas passaram a integrar o grupo. Os novos membros eram tanto imigrantes recentes, do pós-guerra, quanto do pré-guerra, mas que só então ingressaram na organização.
Essas novas personalidades incluem artistas como Manabu Mabe (Kumamoto, 1924 - São Paulo, 1997), Tikashi Fukushima (Soma, 1920 - São Paulo, 2001), Tomie Ohtake (Quioto, 1913 - São Paulo, 2015), Flávio Shiró (Sapporo, 1928) e Kazuo Wakabayashi (Kōbe, 1931 - São Paulo, 2021), dentre tantos outros. Eles representaram algumas mudanças na maneira de ver e de pensar as expressões artísticas.
Tais divergências que, além de estilísticas, eram também geracionais, acabariam por desgastar o relacionamento entre integrantes do grupo, que já contava com uma centena de integrantes na década de 1960.
Apesar do encerramento das atividades em 1971, o ambiente do grupo foi fundamental para o início da carreira de diversos artistas. Muitos dos novos nomes que marcaram a segunda fase do Seibi acabaram por migrar do figurativismo para o abstracionismo, e tornaram-se grandes representantes desse estilo no Brasil, rompendo a "bolha dos japoneses" à qual muitos de seus conterrâneos foram condicionados pela crítica. Handa, no entanto, permaneceu figurativista até o fim da vida.
Para finalizar, gostaria de propor uma reflexão sobre o que podemos imaginar quando pensamos em arte nipo-brasileira. Associar um/a artista ou uma produção a esse adjetivo, ao mesmo tempo em que caracteriza e expande as possibilidades de referências, pode também ter um efeito prejudicial no imaginário coletivo sobre suas obras.
Condicionar um ou outro aspecto de qualquer expressão artística à origem geográfica do/a autor/a é perigoso. Corremos o risco de limitar sua arte a um nicho único de referências, ou esperamos uma suposta intencionalidade de tradução de aspectos estéticos e sociais de sua cultura. Em outras palavras, não é porque um/a artista é japonês que necessariamente ele ou ela irá expressar algo da cultura japonesa em sua obra.
Como exigimos isso quando sabemos que seres humanos são subjetivos, construídos por suas vivências? Vivências estas que, nesses casos dos artistas citados, foram construídas no lugar conjunto, no encontro, na ponte. No limiar, no entre, no espaço intermediário, as possibilidades são potencializadas. É a partir dele que podemos e devemos reeducar nosso olhar, propor novos meios para pensar a arte fruto do encontro. Não condicionando uma expressão a uma ou outra cultura, mas abraçando a inter-relação, tendo em mente que a maior riqueza está na não-delimitação de espaços pré-concebidos.
[Sobre as fotos]
Todas as imagens foram tiradas no Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, que funciona no prédio da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa - Bunkyo, localizado na rua São Joaquim, nº 381, bairro Liberdade, São Paulo. O horário de visitação é de terça-feira a domingo, das 13h às 17h. Às quartas-feiras, a entrada é gratuita. Em exposição, podem ser conferidas diversas pinturas de Tomoo Handa, além de obras de outros artistas importantes para a história da arte nipo-brasileira. Mais informações podem ser acessadas no site do museu.
Referências
HANDA, Tomoo. O imigrante japonês: história de sua vida no Brasil. São Paulo: Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, 1987.
TANAKA, Shinji. História da arte nipo-brasileira. São Paulo: Hicitec, 2019.
Felipe Mendes Pinto: Mestre em Língua, Literatura e Cultura Japonesa pela Universidade de São Paulo, onde realiza pesquisa sobre arte nipo-brasileira no século XX e tradução de estética japonesa. É integrante do Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAAA, Unifesp) e do Laboratório de Estudos em Estética e Imagem (Imago, UFC). Bacharel em Comunicação Social pela UFC. Atualmente, tem desenvolvido trabalhos com foco na arte e na estética japonesa a partir de linguagens diversas como poesia, literatura, cinema e artes visuais.





